domingo, 21 de setembro de 2008

ÁCIDO DO NELSON - Do óbvio ululante ao buraco da fechadura















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A palavra cortante, a idéia brilhante.
A genialidade revolucionária de Nelson Rodrigues.
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Aqui neste espaço estaremos homenageando a uma das maiores inteligências do Brasil. Patrimônio da nossa dramaturgia e da nossa imprensa esportiva:
O Anjo pornográfico, Nelson Rodrigues!
No primeiro capítulo da série um resumo de seu conto ‘O escravo etíope’ do Livro "A Vida Como ela é” lançado em 2006
Pela Editora Agir. O texto completo desse conto e de outros 99
você se delicia nesse livro fantástico. Vamos a isso!

O escravo etíope

Saiu do colégio com 15 anos e

trouxe para o mundo a sua inocência maravilhada. Ninguém mais sensível e
exclamativa. De uma fragilidade física impressionante, qualquer esforço dava-lhe
palpitações. falta de ar; uma simples aragem a resfriava. O médico da família, que a
examinou várias vezes, repetia:
— Tem uma saúde muito delicada. É preciso cuidado, muito cuidado.
Havia na família, o medo ou o presságio de que viesse a sofrer do peito
como uma tia que morrera tísica. Filha de pais ricos, era tratada na palma da mão,
com os mimos de uma princesa. E justamente por ser tão fina e frágil, de uma
natureza tão delicada e suscetível, ninguém a contrariava. Aos 16 anos, teve o seu
primeiro namorado. Era um primo, ótimo rapaz, educadíssimo, simpático e mesmo
bonito, aristocrata nos modos, idéias e sentimentos. Ela se chamava Margô e
ele, Paulo. Pareciam feitos um para o outro. Para as duas famílias foi, como se
disse, "um achado". Não houve duas opiniões. Todos disseram: "Ótimo, ótimo."
E o pai, que tinha a religião do dinheiro e a idéia fixa da pompa, exigia, esfregando
as mãos:
— Quero um casamento de arromba! — e sublinhava: — Um casamento que
deixe todo mundo besta!

preparativos nupciais

Enfim, foi proclamado o noivado. O velho — que era de origem plebéia e
tivera de criar, tostão a tostão, a própria fortuna — queria um vestido de noiva
inédito e deslumbrante, que embasbacasse a cidade. Acirrava as mulheres, dando
murros na mesa: "Gastem sem dó nem piedade." Na sua mania, fazia cálculos
alucinados: "Um vestido de uns cem, duzentos contos." Tal desperdício arrepiava
as presentes. A própria noiva sentia-se desfalecer. Mas ele, desvairado, batia nos
próprios bolsos: "Gastem! Eu pago! Pago!"

(...)

Um batalhão de costureiras pôs-se a trabalhar, dia e noite, no vestido mágico.
Quando uma delas cansava, o velho vinha lá de dentro com a idéia do suborno. "Eu pago extraordinário! Dou gorjeta, o diabo!".
Vestido pronto, a cerimônia estava com data marcada.


Faltavam uns 15 dias para o casamento. E, à noite, depois do jantar, ela se queixou de palpitações. As pessoas próximas se entreolharam num pavor de pneumonia. Alguém sugeriu: "Vai ver que foi um golpe de ar!" Passou. Mas na hora de se despedir do noivo, Margô fez-lhe o pedido:
— Precisava de um favor teu.
Ele, sempre cavalheiresco, limitou-se a dizer:
— Dois.
Margô baixou a vista, fugindo do seu olhar intenso:
— Eu queria adiar o nosso casamento.

Justiça se lhe faça: ele foi impecável. Explicou que naturalmente estaria muito
interessado em que o casamento fosse o mais rápido possível. "Mas já que você
quer, meu anjo..." Um pouco vaga, Margô explicou que não se sentia bem, que
devia ter alguma coisa e, enfim, que andava nervosa, etc, etc. Paulo com sua polidez
irrepreensível afirmou: "Por mim não há dúvida." Quem se doeu com a transferência
foi o velho. Estava mais ansioso pelo casamento do que os noivos. Gemeu,
desabando numa cadeira:
— Que caso sério! Que caso sério!

Margô foi ao médico, que a examinou meticulosamente. Não achou, no seu
estado, a menor novidade. Continuava fisicamente delicada, mas não apresentava
nenhum sintoma que sugerisse doença.
A família do noivo estranhava:
— Que diabo! Vocês se casam ou não se casam?
Ele parecia abdicar dos próprios direitos:
— Quem decide é Margô.
Protesto geral:
— E você não pia? Ora veja! Não está certo, não está direito!
Sob a pressão dos parentes, foi conversar com a noiva:
— Meu anjo, precisamos marcar uma nova data.
Ela suspirou:
— Já? Vamos esperar mais um pouco.
Como ele insistisse, embora com um máximo de tato e delicadeza, Margô
acabou concordando. Houve um conselho de família, com a presença dos noivos,
fixou-se o casamento para daí a três meses. Todos se animaram de novo.
Houve a febre dos preparativos. Mãe, tias e amigas se reuniam planificando a festa.

A mãe, que era uma senhora fina, interrogou os noivos: "Como é? Vocês vão
viajar?"
Finalmente, deu para a filha e o futuro genro a sugestão:
— Se eu fosse vocês, sabem o que eu fazia? Uma viagem! — e já animada, já
excitada pela própria idéia, continuou: — Casamento sem viagem de núpcias é tão
sem graça! Vocês podiam ir à Europa, aos Estados Unidos!
O noivo pareceu impressionado; comentou, grave: "Boa idéia." Virou-se para
Margô: "Você não acha, Fulana?" Ela respondeu:
— Não. Acho pau. Gosto de ficar em casa.
Dois dias depois, pediu que se adiasse, de novo, o casamento. Houve assombro
na família. Crivaram-na de perguntas: "Mas adiar por quê? Qual o motivo?"
Ela, desesperada, procurou um motivo, como se estivesse disposta a inventá-lo;
disse, por fim: "Ando nervosa." (...)

Uma semana depois, a mãe foi sondá-la: "Você gosta mesmo do Paulo,
minha filha?" Disse que sim, que gostava, mas que...
Ainda uma vez, o noivo foi magnífico: concordou com o adiamento

a sogra
Quem não gostou foi a futura sogra. Chamou o filho. Instigou-o: "Essa menina
está fazendo você de gato e sapato. Isso não é papel! Onde é que nós estamos?"
Ele. que adorava a noiva, que a colocava acima de tudo e de todos, cortou o debate:
"Vamos mudar de assunto, sim, mamãe?" A velha, porém, era tremenda. Largou o
filho, com as seguintes palavras: "Está certo, não se fala mais nisso. Mas quero te
dizer uma coisa: aqui há dente de coelho."

Nesta mesma tarde, porém, recorreu a vários conhecidos, atrás de uma informação,
até que descobriu um detetive particular. Chamou o homem; perguntou:
— O senhor é discreto?
— Um túmulo!
— Ótimo. Eu preciso mesmo de um túmulo. Trata-se do seguinte...
Incumbiu o sujeito de acompanhar os passos de Margô; advertiu: "Pode ser
palpite meu, mas não custa apurar." O Fulano concordou, grave: "Evidente! Evidente!"
Deixou-o. com a super-recomendação: "Ninguém pode saber disso!" Quarenta
e oito horas depois, o detetive reaparecia, de olho esgazeado. Contou,
longamente, o que apurara. De vez em quando, interrompia o relatório para exprimir
seu estupor: "De arder! De arder!" Assombrada, a velha balbuciou: "Eu só
acredito vendo com os meus próprios olhos!" E o detetive: "Amanhã, eu mostro o
homem à senhora!"

o bem-amado
No dia seguinte, encontraram-se a velha e o detetive na porta de uma companhia
de ônibus. Súbito, o profissional indica: "Olha o homem!" Ela espiou. Lá vinha
ele, no meio de outros motoristas, um negro gigantesco. Segundo apurara o
detetive, ele saíra, no último carnaval, no rancho, de escravo etíope, com o dorso nu
e retinto. A velha, fora de si, gaguejava: "Quer dizer que é esse o namorado de
minha nora?" O detetive pigarreou:
— Isto é, mais do que namorado. Eu apurei tudo, direitinho. Tenho endereços,
o diabo. E posso provar.
Então, a velha cambaleou. Seu estômago se contraiu, sofreu, ali mesmo, uma
náusea violenta. Afastaram-se; ela pagou o preço que ele impôs e partiu num táxi.
Como era uma mulher viril, de muito gênio, preferiu ir, de uma vez, à casa da
menina. E, lá, fez um escândalo medonho. Quiseram expulsá-la; foi chamada de
louca. Ela, em desespero de causa, virou-se para a própria Margô que, sem uma
palavra, ouvia tudo:
— É verdade ou não é?
Todos se voltaram na direção da menina. Então, aquela mocinha frágil, fina,
que desfalecia ao aspirar um perfume mais intenso, ergueu o olhar firme, quase
cruel. Disse apenas, sem medo:
— É verdade.
A ex-futura sogra saiu dali feliz e vingada. Foi um escândalo pavoroso. O pai
veio, esbravejante. Falou em dar tiros. Ela o conteve com a ameaça: "Se fizer isso,
eu me mato!"
Ante a perspectiva do suicídio, a família capitulou. Tiraram o rapaz da companhia
de ônibus, arranjaram um emprego. E, um dia, casaram-se às escondidas. No
seguinte carnaval, quando o sogro passava, de Cadillac, pela Praça Onze, viu o
genro, num rancho — fantasiado de escravo etíope.

TÍTULO: A VIDA COMO ELA E
ISBN: 8522007276
IDIOMA: Português.
ENCADERNAÇÃO: Brochura Formato: 17 x 24 608 págs.
ANO DA OBRA/COPYRIGHT: 2006
ANO EDIÇÃO: 2006

PREÇO: em média R$ 70,00

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