segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Revista Língua Portuguesa





A prosa teatral de Nelson Rodrigues


A frase nos ajuda a entender por que Nelson Rodrigues é até hoje, passados quase 30 anos de sua morte, um dos escritores mais populares do Brasil.
"Não reparem que eu misture os tratamentos de 'tu' e 'você'. Não acredito em brasileiro sem erro de concordância."
Herdeiro do projeto modernista de aproximar a literatura da língua falada, Nelson Rodrigues (1912-1980) levou aos palcos e aos jornais em que trabalhou um linguajar popular, bem carioca, incorporando à escrita gírias e outras características típicas da dinâmica da fala.
É preciso voltar no tempo para entendermos o significado dessa inovação. Em nosso processo de colonização, os portugueses conseguiram se impor à população não só política e economicamente, mas também ao idioma. Criou-se o que o crítico literário uruguaio Angel Rama denominou "diglosia", a existência de duas línguas separadas hierarquicamente: a pública (escrita, restrita à classe dirigente) e a popular e cotidiana (falada, usada na vida privada das elites e forma de expressão das classes populares).
O movimento modernista, nas suas diversas vertentes, procurou romper com essa tradição e aproximar não só essas duas línguas como também o próprio brasileiro, que os modernistas entendiam como povo separado por abismos de diversas naturezas. As distâncias físicas, a diversidade das culturas regionais, as desigualdades econômicas, entre outros fatores, deveriam ser superadas em nome da construção de uma cultura nacional comum. Imaginem esse desafio num país de proporções continentais e, naquela década de 1920, com dificuldades de transporte e comunicação que aprofundavam ainda mais essas barreiras.


Teatro da prosa


Para literatos como Mário de Andrade e Oswald de Andrade, se a literatura pretendesse contribuir nesses esforços teria de sair das oficialidades encasacadas e aproximar-se dos falares do povo. Só assim ela poderia ser compreensível e elevar-se esteticamente, deixando de macaquear, nos termos da época, as literaturas internacionais, especialmente a francesa, moda de então.
Se na literatura, na música e nas artes os modernistas conseguiram criar escola, especialmente desde os anos 30, nos palcos o Modernismo demorou mais a fazer-se presente.

O próprio Oswald havia escrito peças, mas elas não chegaram aos palcos. A mais famosa, O Rei da Vela, publicada em 1937, só foi encenada trinta anos depois, numa histórica montagem do grupo Oficina. O que passava pelos palcos então?

Basicamente, dois tipos de peças. As populares, ligadas às comédias e ao teatro de revista. E, para um público elitizado, um "teatro sério", quase sempre associado a encenações de autores estrangeiros clássicos. Se um diretor, ator ou uma atriz quisesse ser respeitado ou respeitada pela crítica, deveria dedicar-se a tais peças, como as de Shakespeare ou dos gregos. Os autores nacionais tinham dificuldades de verem seus textos representados, pois os estrangeiros mais consagrados eram garantia de retorno financeiro nas bilheterias. Quando o conseguiam, geralmente seguiam a linha desse "teatrão".
Quando a peça Vestido de Noiva estreou nos palcos cariocas, em 1943, boa parte da crítica especializada saudou-a como o evento que marcava a atualização de nossa cena teatral com o Modernismo. Exageros e imprecisões à parte, já que essas afirmações desconsideraram experimentos teatrais importantes e anteriores, o fato é que Vestido de Noiva traz elementos de linguagem que, mais tarde, Nelson desenvolveria nas tragédias cariocas.


Prosa teatral


Entre o sucesso de Vestido de Noiva e a estréia de sua primeira tragédia carioca, A Falecida (1953), Nelson amargou censuras, fracassos e decepções. Rotulado como escritor maldito a partir do escândalo da peça Álbum de Família, censurada em 1946, o autor parecia distante da popularidade. Era agora o "tarado", o "inimigo da Igreja e da família", logo ele tão conservador...
Isso começa a mudar quando Nelson é convidado por Samuel Weiner, dono do jornal Última Hora, a escrever uma coluna, que ganhou o nome A Vida como ela É... Era 1951.

O jornal havia sido fundado para apoiar o presidente Getúlio Vargas, eleito pelo povo, mas ignorado pela grande imprensa que se opunha ao seu perfil político nacionalista. Para cumprir o papel de levar o recado do presidente às massas e garantir sua sustentação política, o jornal precisava ser popular e distanciar-se do jornalismo mais elitista que predominava então.
Mesmo tendo trabalhado em jornal desde os 13 anos, e escrito folhetins com o pseudônimo Suzana Flag, a Última Hora foi uma escola para Nelson Rodrigues.

Seus contos da coluna A Vida como ela É... logo se tornaram sucesso de público. Um dos mais famosos é A Dama do Lotação, história da mulher casada que escolhia seus amantes entre os desconhecidos do transporte público, e que se tornou filme. Vamos ver um trecho em que Solange conta ao marido como iniciou as traições com desconhecidos com apenas um mês de casada:
"Mecânico e desconhecido: duas esquinas depois, já cutucara o rapaz: 'Eu desço contigo'. O pobre-diabo tivera medo dessa desconhecida linda e granfa. Saltaram juntos: e esta aventura inverossímil foi a primeira, o ponto de partida para muitas outras".
"Cutucar", "pobre-diabo", "granfa" (corruptela de grã-fina). Todas essas, expressões coloquiais comuns no linguajar carioca dos anos 1950. A ambientação do conto no Rio se dá mais pela linguagem do que por descrições de paisagens e locais.


Tragédia carioca


O que se deu nos contos também ocorreu no teatro. A partir de 1953, Nelson começa suas tragédias cariocas. No palco, histórias de traições, amores proibidos, dramas familiares. Mas agora com doses de humor e os falares cariocas. Ainda que mantivesse a pretensão do início da carreira, de fazer teatro sério (tanto que evitava classificar suas peças como comédias), o autor trazia tipos e situações do ambiente urbano do Rio, e os diálogos acompanhavam isso. Em A Falecida, o marido descobre que a mulher o traía depois que ela morre. Num dos diálogos iniciais, o tal marido, ainda sem saber de nada, conversa animadamente com os parceiros de sinuca:


"TUNINHO - Vou te dizer mais: estou desempregado e outros bichos. Quer dizer, na última lona. Mas estou tão certo, tão certo, que vai ser uma barbada daquelas, que te juro, sob minha palavra de honra, que se eu tivesse dinheiro, sabes o que eu fazia, no domingo, queres saber?

OROMAR - Você é bom de bico!
(Tuninho está numa verdadeira euforia)

TUNINHO - Espera, ouve o resto, seu zebu! Eu entrava no Maracanã. Muito bem. Vamos dar, de barato, que umas 100 mil pessoas assistam ao jogo.(...)

TUNINHO - Seja 150 ou 200 mil pessoas. Não importa. Até aí morreu o Neves. Pois eu, se tivesse o dinheiro meu, no bolso, eu, sozinho, apostava com 200 mil pessoas no Vasco. Havia de esfregar a gaita assim, na cara das 200 mil pessoas, desacatando: 'Seus cabeças-de-bagre! Dois de vantagem e sou Vasco!'

Te juro que ia fazer a minha independência, que ia lavar a égua!".
Para além da ambientação (sinuca, zona norte, referência ao Maracanã), o que confere verossimilhança ao personagem e à situação é seu jeito de falar. "Barbada" para referir-se a um jogo com um evidente favorito; "bom de bico" no lugar de indivíduo que sabe convencer (e até mesmo enganar) os outros com seus argumentos; "dar de barato" por "subestimar"; "até aí morreu o Neves", ou seja, "isso não faz diferença", "não significa nada"; "gaita" no lugar de "dinheiro". E ainda "cabeça-de-bagre" e "lavar a égua", de difícil tradução etimológica. Num pequeno trecho, quantos exemplos de um trabalho sofisticado com a linguagem, tudo para conferir teatralidade à palavra falada. As gírias são parte importante disso, pois são os elementos mais cambiantes da oralidade, marcando bem a expressão oral em determinados contextos e em determinadas épocas.


Combate cultural

E é esse trabalho com a linguagem a base do flerte da obra rodriguiana com a cultura de massas. Não só o cinema, mas a televisão buscou inspiração em seus escritos. Segundo Jesús Martín-Barbero, importante teórico da comunicação, a cultura de massas incorpora, ainda que de forma contraditória e distorcida, elementos da cultura popular que garantem sua aceitação entre amplos estratos da sociedade. As classes populares, tornadas consumidoras de bens culturais, podem reconhecer-se, mesmo parcialmente, naqueles produtos. Isso explica um dos motivos da aceitação popular da obra de Nelson.
Para além dos temas polêmicos, como família e sexualidade, o apelo junto ao público também se dá pelos diálogos plenos de cotidianidade, aproximando histórias e personagens de um público amplo que se reconhece nessas falas. O sucesso de Nelson na indústria cultural se deve em grande medida aos diálogos e à fraseologia popular, que tornam seus personagens tão humanos e reconhecíveis.


Linguagem popular



Mesmo quando, nos anos 1960 e 70, defendeu a ditadura e se assumiu como reacionário, Nelson manteve a busca por uma linguagem popular e utilizou-se disso para rotular a esquerda como formada de intelectuais de classe média que nada entendiam de povo. Com humor devastador, suas crônicas em O Globo fizeram mais pela propaganda do regime que muitos órgãos oficiais destinados a tal fim.
Nessas décadas, Nelson ampliou sua popularidade com as crônicas de futebol. De certo modo, o movimento aí era o inverso. Como cronista, Nelson fazia da narração de um jogo uma aventura literária cheia de referências a Dostoievski, Shakespeare, Proust e outros clássicos. Amarildo era "o possesso", numa clara referência ao livro Os Possessos, do autor russo que Nelson tanto adorava.
Nos dois casos, os contos que buscavam aproximar-se da oralidade e as crônicas que transformavam uma paixão popular em literatura, Nelson defendia a autonomia da criação jornalístico-literária, clamando contra o que ele chamava de "idiotas da objetividade". Estes eram personificados pelos copidesques, profissionais que, orientados pelos padrões do jornalismo estadunidense, cortavam e modificam os textos de jornais para conferir a eles objetividade e concisão. Parecia claro que, para o autor, se a realidade não coubesse na narrativa, pior para a realidade.
Por essas, Nelson Rodrigues acabou conhecido como grande frasista, com tiradas repetidas por gerações, como "O mineiro só é solidário no câncer"; "Toda coerência é, no mínimo, suspeita"; "Na vida, o importante é fracassar", fruto de uma filosofia de bar que é o núcleo de bom senso do senso comum, transmutada em linguagem literária.
E, se toda unanimidade é burra, é claro que essas escolhas estéticas e lingüísticas mereceram críticas dos que viam nelas um empobrecimento no uso da língua, em especial nas peças teatrais. A essas críticas, Nelson Rodrigues respondia:
"Os críticos achavam a minha linguagem pobre. O que eles queriam era a eloqüência, a subliteratura, enquanto eu partia para a palavra viva, ainda suada de vida, suada de rua, suada de cotidiano, suada de paixão. Se não tenho outras virtudes, tenho esta e a reivindico para mim: - a de ter um diálogo extremamente teatral".
Os diálogos que criava, Nelson os admitia "pobres". Mas, completava, só ele sabia o trabalho que dava "empobrecê-los".
Nelson com a palavra

A palavra - Não se adia um olhar, um sorriso, uma frase. Há sempre uma palavra que não devemos calar. Somos perecíveis, mas esquecemos que somos perecíveis.

De "Moacir Padilha" (O Globo, 17/2/1972), em O Reacionário: Memórias e Confissões (Agir, 2008)

A frase Ah, o brasileiro mata e morre por uma frase. Nunca me esqueço de uma crônica dominical do Carlinhos de Oliveira: Terminava assim: - "A solidão do homem é um problema político". Era a chave de ouro. (...) Há um velho e obtuso preconceito, segundo o qual todas as frases querem dizer alguma coisa. Nem sempre. No caso do Carlinhos, nem ele nem a frase querem dizer rigorosamente nada. E foi por isso que Carlinhos a fez, e foi por isso que Carlinhos a publicou. Mas certas frases vivem, precisamente, de mistério e de suspense. A nitidez seria fatal. "A solidão do homem é um problema político." Na pior das hipóteses, há uma melodia e o resultado auditivo basta.

De "A Frase" (O Globo, 5/7/1968), em A Cabra Vadia (Agir, 2007)

O jargão "A superioridade do economista sobre o resto dos mortais é que fala do que ninguém entende. Se uma girafa aparecesse, ali, de repente, não seria tão olhada, apalpada, farejada." De "A Influência das Minissaias nas Leis da Economia" (O Globo, 26/4/1969), em O Reacionário (Agir, 2008)
A metáfora Eis o que me pergunto: - Por que não insistir na imagem bem-sucedida?

Certa vez, vou passando pela porta do cinema Rex. Súbito, ouço o grito triunfal:
- "Óbvio ululante!" Viro-me e vejo, na outra calçada, um lavador de automóvel. Passando a estopa no pára-lama, berra, outra vez: - "Óbvio ululante!"

Faço-lhe um gesto amigo. E o outro pergunta: - "A pronúncia está certa?". De "Nada mais Antigo do que o Passado Recente" (O Globo, 16/5/1969), em O Reacionário

Fôlego renovado

Autor de 17 peças de teatro, nove romances e inúmeros contos e crônicas, Nelson Rodrigues está longe de ter esgotado o interesse por sua obra.
A editora Agir, que desde agosto de 2006 deu início a uma nova fase de relançamentos das obras do jornalista e dramaturgo, promete novos volumes do autor para os próximos meses.
Em novembro, será lançada uma seleção de textos sobre o Rio de Janeiro, seus personagens e situações típicos. Para o ano que vem, chega às livrarias Memórias, A Menina sem Estrelas (coletânea dos textos de Memórias publicadas no jornal Correio da Manhã), além de outros livros, ainda sem títulos, como uma coletânea de entrevistas que ele concedeu ao longo da carreira, uma seleção de frases sobre o amor e uma coletânea de textos esportivos publicados no jornal
Última Hora.
Volumes de peso, literalmente, já foram lançados na nova fase editorial da prosa de Nelson.

A Vida como ela É... traz uma antologia feita pelo próprio autor em 1961 com parte da série (1951-1961) editada no Última Hora, a mesma fonte de Elas Gostam de Apanhar, que traz 26 histórias originalmente reunidas em livro em 1974. Também vieram os livros de crônicas O Óbvio Ululante (1968), O Reacionário: Memórias e Confissões e O Berro Impresso das Manchetes (com textos esportivos produzidos de 1955 a 59 para Manchete Esportiva), o romance O Casamento (1966) e os folhetins O Homem Proibido (1951), Meu Destino é Pecar (1944) e Asfalto Selvagem - Engraçadinha, seus Pecados e seus Amores (1960).

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